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quarta-feira, 30 de julho de 2014

Livros e idiotas: uma resposta à revista Bula

Em algum momento de nossas vidas nós nos deparamos com atos ou comentários preconceituosos de qualquer ordem. O fenômeno é natural, mas não por isso menos condenável. Quase sempre advém do fato de um lugar ou uma prática, que outrora pertencia a um pequeno e seleto grupo, passar a ser frequentado ou praticado pelas outras pessoas, ou seja, o público geral. É um fusca entrando num shopping center, os smartphones chegando às favelas... ou a literatura começando a ser de interesse de todos.

Chegou até mim um texto da revista Bula, assinado pelo publicitário Tadeu Braga, chamado "10 livros para idiotas". A proposta é bem autoexplicativa: o autor lista 10 títulos de livros que, segundo ele, são lidos por idiotas. Eu, particularmente, conheço todos e já li alguns dos citados - tendo gostado bastante da experiência -, portanto, fui um dos atingidos pela alcunha de "idiota".

O autor inicia seu texto dizendo que "Está enganado quem acha que idiotas não leem.", e nisso eu concordo plenamente com ele. Idiotas estão por todos os lugares, fazendo as mais diversas coisas (alguns até escrevem em revistas). Logo após critica que "autores sem talento" estejam ficando multimilionários por conta desses leitores "idiotas". Mais adiante, ainda nos dois parágrafos introdutórios, nivela aqueles que falam "indiota" com quem acha que Harry Potter é a melhor coisa que já leu na vida. 

Pois então, eu digo: Harry Potter é uma das melhores coisas que já li na vida, por diversos motivos, sendo o mais profundo de todos o valor sentimental que me remete à infância e a minha inserção no mundo mágico de Hogwarts. Além do mais, J.K. Rowling deve ser aplaudida de pé por ter feito uma história tão envolventemente boa a ponto de fazer com que crianças começassem a ler e, consequentemente, perdessem o receio infundado de que livros são para poucos, que é oriundo de toda nossa lamentável história e cultura com a literatura - que quer ser perpetuada por pessoas como o autor do infeliz texto aqui tratado. A história de Harry Potter é, no início, um conglomerado de elementos pagãos e da literatura fantástica clássica, para depois, com o passar dos anos, começar a andar com as próprias pernas. Se não é das mais originais histórias, nem das de maior qualidade literária, com certeza serve para dar o mínimo de bagagem para que seus leitores não saiam falando "indiota" - e isso eu garanto.

A tal lista feito pelo publicitário é, sem dúvida, controversa e polêmica - isso porque traz tanto alguns títulos já anteriormente classificados como literatura de baixa qualidade, como também clássicos absolutos da literatura.

A lista dos famigerados livros de "baixa qualidade", que já apanharam incansavelmente da crítica, não poderia ser diferente: "Cinquenta Tons de Cinza" de E.L. James, "Crepúsculo" de Stephenie Meyer, e "Inferno" de Dan Brown. Vamos de trás para frente. Já li todos os seis livros do Dan Brown (e adivinhei, sem maiores problemas, o final do último) e inclusive já falei sobre isso: encaro a leitura como um guilty pleasure, ou seja, um prazer culpado. Sim, os personagens são superficiais, depois de um tempo os acontecimentos são previsíveis, a fórmula se repetiu exatamente em todos os livros (com exceções em "O Símbolo Perdido"), mas ao mesmo tempo, o autor nos dá uma enxurrada de dados históricos que tangem os verdadeiros interesses da trama (arte e simbologismo, no caso das histórias de Robert Langdon), e pitadinhas de cultura inútil que, afinal, também são muito interessantes. Dan Brown não é dos autores mais complexos e profundos, mas ler, por si, já é um ato que traz consigo toda uma bagagem de vocabulário e desenvolve a atenção daquele que está à frente do encadernado (no mínimo, é claro).

O mesmo deve ser aplicado aos demais. Que a jovem insegura leia Crepúsculo, que a tiazona leia Cinquenta Tons de Cinza: se aquilo as prende, se lhes é interessante, então ótimo! Só aí já então entrando no incrível mundo da literatura. O grande problema é ficar apenas nisso e se contentar sempre com narrativas fáceis e de enredo ordinário. Mas veja: ainda bem, não é isso que acontece na maioria dos casos. A menina que lia John Green vai se perguntar quem é o tal Machado de Assis. O menino que lia Goosebumps vai querer saber o que tem de tão extraordinário em Os Miseráveis. A questão que incomoda muitos, inclusive o autor da lista, é ter esses livros como porta de entrada para um mundo que antes era deles e apenas deles. Lamentável. Por isso, devo dizer: leia tudo que te interessar, tudo que parecer merecedor da sua atenção, mas busque sempre ir à frente, procurar os clássicos e se informar sobre. Ninguém nasce com um volume de José de Alencar na mão. Vá aos poucos, mas dê passos conforme sua habilidade em encarar livros permitir.

A parte mas irritante da lista é quando o autor fala sobre os livros clássicos que os "idiotas" leem, preste atenção: "O Retrato de Dorian Gray" de Oscar Wilde, "A Hora da Estrela" de Clarice Lispector, "Assim falou Zaratustra" de Friedrich Nietzsche, e "O Morro dos Ventos Uivantes" de Ellis Bell. O autor do texto diz que "livros para idiotas" são diferentes de "livros idiotas". O argumento é o mais cretino possível: segundo ele, os leitores atuais que buscam esses livros não trazem consigo as "motivações corretas". Para ele, ler Nietzsche é apenas uma moda entre "idiotas que querem falar sobre filosofia" e ateus radicais. Veja bem: eu já tentei me arriscar na leitura de Zaratustra, e dei com a cara na parede. O livro é assaz complicado e traz consigo uma série de metáforas complexas que faltaram-me culhões intelectuais para leva-lo adiante naquele momento. Pois então, se os "idiotas" o leem, que bom! Assim estão buscando livrar-se de tal condição, estão querendo sair da caverna de Platão! (Ou será que, em minha mera condição de estudante, é um ato idiota citar Platão?) Sobre os ateus mais radicais, nem para falar desta ala mais juvenil e imatura intelectualmente que vem crescendo o autor do texto acerta. Seria uma boa crítica falar que muitos dos ditos "céticos" não têm qualquer respaldo literário para suas convicções, mas não é o caso! Eles buscam tanto inspiração quanto respaldo para suas teorias na literatura de Nietzsche.

No caso de "O Morro dos Ventos Uivantes", ele não é menos falacioso, afinal, considera "idiotice" que muitos busquem esse clássico apenas por terem tomado como referência "Crepúsculo", onde o livro supracitado é o preferido da protagonista deste best-seller, Bella Swan. Ler clássicos só por ter visto uma personagem o lendo, que absurdo, que idiotice! (?) Com Oscar Wilde e Clarice Lispector, os preconceitos do autor não param. Para ele, é um absurdo ler Dorian Gray apenas por ali se tratar de um velado amor homossexual, além do próprio autor ser declaradamente gay. E ainda, com Lispector, buscar seus romances apenas por ter visto seu nome uma ou outra vez na internet não é coisa que se faça! (Ao menos na cabeça do autor dessa lista, é claro).

Num país como o nosso, onde a maioria das pessoas lê menos de um livro por ano, há espaço para que alguém debata as motivações do indivíduo ao buscar um livro? Não que não seja algo a se  fazer, mas nossa situação não é das melhores para julgar se há naquela busca pelo livro os motivos mais nobres ou moralmente corretos. Buscar por um livro, entrar numa biblioteca, numa livraria, ou seja, ver nos livros um certo interesse já é o suficiente para buscar certa elucidação e/ou se diferenciar do meio na busca de informações e, por que não?, de entretenimento. Idiotice, ao menos me parece, é querer conter a curiosidade de um leitor em potencial através desse tipo de policiamento moral.

Outros três livros que, segundo ele, destinam-se a idiotas são os lançados pelo Felipe Neto, pelo Porta dos Fundos e pelo Justin Bieber. A mim realmente não importa se o Felipe Neto tenha boas estórias para contar, se o Porta dos Fundos tem bons roteiros ou se o Justin Bieber tem história suficiente aos 16 anos para lançar uma biografia. O que importa é que existem pessoas que são muito fãs, outras que são fascinadas pelo trabalho dos três aqui citados. O meu caso, pelo visto, se aproxima do do autor do texto, que é não ter admiração o suficiente para comprar um livro dos tais midiáticos, porém, é fácil notar certa imparcialidade ao colocar casos semelhantes em nossas vidas. Já comprei um livro deluxe collection de Game of Thrones, muitos já compraram livros-atlas de O Senhor dos Anéis, outros já adquiriram seus mimos de The Beatles. Seguindo a lógica do autor, que vê tudo de fora, numa óptica bastante míope, esses livros não terão nada a acrescentar em nossas vidas, porém, àqueles que tem como ídolos quem quer que seja, um livro como esse os faz se sentir mais próximos e mais conectados àqueles que admiram. Estão errados ao fazê-lo? Creio que não.

Por fim, digo o seguinte: tudo que permeia o raciocínio do autor dessa lista infeliz não é apenas idiota (para não perder a oportunidade), mas também falacioso e elitista. O mercado editorial brasileiro está mudando, e muitos relutarão em aceitar que seu ambiente cult agora está cada vez mais popularizado (ainda bem!), e formando leitores vorazes a cada dia. A frase é piegas, mas vale em todo um sentido a ser refletido: livros não mudam o mundo, mas leitores o mudam.

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