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quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Augusto dos Anjos e seu esplêndido mau gosto


Augusto dos Anjos é um dos poetas mais interessantes de toda a literatura em língua portuguesa, podendo ser incluído, sem qualquer exagero, no rol dos grandes nomes, junto de Luís de Camões, Bocage, Fernando Pessoa, Raimundo Correia e Drummond de Andrade. Paraibano natural de Sapé, Augusto tem uma obra peculiar que, construída no breve curso de três décadas de vida, ecoa até os dias de hoje como uma das mais expressivas de nossa língua.

Alguns dos mais conhecidos trabalhos de Augusto dos Anjos estão sob a forma de soneto. Os mais fanáticos admiradores de sua obra, aliás, chegam a afirmar que o seu soneto Vandalismo, em que o eu-lírico enfrenta (e destrói) a iconoclastia dos próprios sonhos, é o mais primorosamente escrito da literatura brasileira. Ilações à parte, é certo que o poema mais difundido de Augusto, sabido de cor pelos mais apaixonados por poesia e escrito pelo poeta aos 17 anos de idade, é o soneto Versos Íntimos:

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!


Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.


Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.


Se a alguém inda pena causa a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!


Seus versos constituem formas representativas (muitas vezes impecáveis) da condição humana, visitando os mais diversos temas, passeando pelas inúmeras formas que a poesia permite (isto é, ao menos diante das possibilidades de seu tempo: sonetos e longos poemas de quadras, sempre rimados e dotados de métrica) e, principalmente, se valendo de uma carga vocabular destoante das convenções mais formalistas, retirado quase sempre do meio científico (Augusto era adepto a uma corrente chamada "monismo", que rendeu um poema, Sonho de um monista), que chegava aos leitores sob a forma de termos como diatomácea, hidrópicos, criptógama, vísceras etc.

Esta última característica citada rendeu a Augusto certo desprezo da classe artística, que por muito tempo reduziu-o a epítetos, como o de "poeta cientificista". Aliás, nunca sequer ficou muito claro a qual movimento Augusto dos Anjos se filiava, uma vez que sua obra era, por ainda manter certo rigor na forma, ora considerada parnasiana, ora simbolista, por seu expressionismo muitas vezes exacerbado e pela descrição figurativa de alguns elementos (quase sempre macabros). Foi então de grande valia a contribuição de Ferreira Gullar na elucidação dessa questão. Diz ele: “Talvez nenhum outro autor do período merecesse tanto a denominação de pré-modernista como Augusto dos Anjos. Pré-modernista ele o é na mistura de estilos, na linguagem corrosiva, no coloquialismo e na incorporação à literatura de todas as sujeiras da vida.” Assim dito, a classificação como pré-modernista não poderia ser mais bem colocada: Augusto era um poeta original, tanto por sua visão de mundo como pela forma como compunha seus versos, mesmo que muitas vezes, e aqui faz-se justiça aos seus mais ferrenhos críticos, ele o faça de maneira um tanto quanto mórbida.

A questão é que Augusto tinha plena ciência de que estava fazendo, isto é, ele objetivava, já na concepção de seus versos, chocar seus leitores com sua temática e escolha vocabular. Em um soneto intitulado O Poeta do Hediondo ele diz: "Ah! Certamente eu sou a mais hedionda/ Generalização do Desconforto.../ Eu sou aquele que ficou sozinho/ Cantando sobre os ossos do caminho/ A poesia de tudo quanto é morto!".

Tal como fora supracitado, a classe artística da época, os cânones da poesia de um Brasil longínquo, nutriam certo ranço por Augusto dos Anjos, e consideravam débeis as suas tentativas de desenvolver uma obra original e constituída de elementos dos quais ninguém antes ousara se valer – como ocorre, aliás, com qualquer movimento que buscar romper com o status quo, vide o modernismo, no Brasil, ou a dita Questão Coimbrã, em Portugal.

Há uma série de adjetivos possíveis para caracterizar a obra de Augusto dos Anjos, e se valer de um par deles para aqui fazer uma síntese simplista não é tarefa fácil e, ademais, não parece ser justo. Mais fácil dizer o que sua obra não é, e podemos seguramente dizer que ela não é nem romântica, nem otimista. A temática do amor, tão presente na obra dos poetas mais tradicionais, faz-se aqui ausente, e Augusto se justifica em seu soneto Idealismo. Diz ele: “Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!/ O amor da Humanidade é uma mentira./ É. É por isto que na minha lira/ De amores fúteis poucas vezes falo./ O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!”. 

Ainda sobre essa temática, mas agora trazendo a questão e focalizando-a para si enquanto eu–lírico, Augusto diz, em seu poema Queixas Noturnas, que “Sobre histórias de amor o interrogar-me/ É vão, é inútil, é improfícuo, em suma;/ Não sou capaz de amar mulher alguma/ Nem há talvez mulher capaz de amar-me.” Depreende-se, portanto, que não apetecia ao poeta aqui tratado falar das veleidades do coração.

Por outro lado, a ausência de otimismo não é exatamente pessimismo. Explica-se: Augusto não vê a vida como um fim em si mesmo, isto é, o viver não constitui um fator que se justifica nas próprias peripécias por que passa aquele que vive (o amor, as tristezas, a felicidade familiar, os prazeres da carne etc.), atendendo, então, a vida a um propósito muito maior: a morte. Dentre as tantas, esta é, certamente, a temática mais explorada por Augusto que, aliás, confessa isso em seu soneto Último credo. Diz ele: “Como ama o homem adúltero o adultério/ E o ébrio a garrafa tóxica de rum,/ Amo o coveiro – este ladrão comum/ Que arrasta a gente para o cemitério!” Ademais, a morte é um prato cheio para que se explore o vocabulário "de mau gosto" tão caro ao poeta, usando-o para tratar, além de algumas reflexões existenciais, de ocorrências pessoais com a morte que o circundavam - o que lhe rendeu, aliás, o epíteto de "poeta da morte" (não gratuitamente, como se há de ver).

Um desses casos se decorre nos Sonetos ao pai, em que Augusto dos Anjos constrói uma sequência cronológica de três sonetos que registram acontecimentos relacionados ao perecimento de seu genitor, o sr. Alexandre Rodrigues dos Anjos. No primeiro deles, A meu Pai doente, o poeta lamenta as dores que afligem seu pai no leito de morte deste, e apresenta um resquício de ressentimento contra aqueles que mal fizeram ao seu pai, questionando "Magoaram-te, meu Pai?! Que mão sombria,/ Indiferente aos mil tormentos teus/ De assim magoar-te sem pesar havia?!", e em seguida fugazmente questiona a índole de Deus, mas logo em seguida conclui que Ele "não havia de magoar-te assim!". No segundo soneto, A meu Pai morto, registram-se os últimos suspiros pai, além de uma saída do poeta para ver a natureza enquanto o pai "dormia", e neste breve passeio ele registra que "(...) pareceu-me, entre as estrelas flóreas,/ Como Elias, num carro azul de glórias,/ Ver a alma de meu Pai subindo ao Céu!" O terceiro, A meu Pai depois de morto, por sua vez, é o mais representativo de todos. Diz ele:

Podre meu Pai! A Morte o olhar lhe vidra.
Em seus lábios que os meus lábios osculam
Micro-organismos fúnebres pululam
Numa fermentação gorda de cidra.

Duras leis as que os homens e a hórrida hidra
A uma só lei biológica vinculam,
E a marcha das moléculas regulam,
Com a invariabilidade da clepsidra!...

Podre meu Pai! E a mão que enchi de beijos
Roída toda de bichos, como os queijos
Sobre a mesa de orgíacos festins!...

Amo meu Pai na atômica desordem
Entre as bocas necrófagas que o mordem
E a terra infecta que lhe cobre os rins!

A morte aparece de maneira ainda mais sombria em um outro soneto de Augusto, escrito em 2 de fevereiro de 1911, o qual ele dedica "Ao meu primeiro filho nascido morto com 7 meses incompletos". É um dos poemas mais emocionalmente carregados, que contempla consigo certa indignação (expressa por meio de questionamentos), inconformismo e desolação - nada fora do que se esperaria da situação que o circundava -, porém, percebe-se que o poeta busca algo de positivo na situação do filho natimorto, tanto que o texto é concluído com certa resignação, em que Augusto parafraseia a célebre máxima de Sófocles, segundo a qual "Não nascer talvez seja a maior dádiva de todas". Segue:

Agregado infeliz de sangue e cal,
Fruto rubro de carne agonizante,
Filho da grande força fecundante
De minha brônzea trama neuronial,

Que poder embriológico fatal
Destruiu, com a sinergia de um gigante,
Em tua morfogênese de infante
A minha morfogênese ancestral?!

Porção de minha plásmica substância,
Em que lugar irás passar a infância,
Tragicamente anônimo, a feder?...

Ah! Possas tu dormir feto esquecido,
Panteisticamente dissolvido
Na noumenalidade do NÃO SER!

O termo de que Augusto se vale para embasar o seu "não ser" (com letras garrafais) nada mais é que um neologismo, isto é, uma palavra que o poeta criou a partir da fusão de universalidade com a palavra grega nous, que expressa uma capacidade humana de captar determinadas verdades por meio da intuição. O uso de tal neologismo pode ser meramente estilístico, mas também pode representar a ausência de uma palavra dicionarizada que expressasse o sentido exato que ele buscava.

Foi na madrugada do dia 12 de novembro de 1914 que Augusto dos Anjos enfim conheceu a face daquela sobre quem tanto falara. Ester Fialho, com quem era casado desde 1910, foi a responsável por informar a mãe do poeta, a sra. Córdula Carvalho Rodrigues dos Anjos, a quem chama de Dona Mocinha, sobre a morte dele através de uma carta. Nela, Ester faz um relato digno do célebre poema Pneumotórax de Manuel Bandeira. Diz a viúva: "Quando vivíamos com descanso, gozando da companhia alegre dos nossos estremecidos filhinhos, eis que uma congestão pulmonar, que degenerou em pneumonia rouba-me bruscamente o Augusto, deixando-me na mais desoladora situação. Todos os recursos da medicina acompanhados dos meus carinhos e cuidados, foram baldados diante da moléstia atroz, que me privou, para sempre, de quem fazia a minha felicidade e a minha alegria."

O que Augusto encontrou assim que se foi, desconhecemos, e poucos de nós se propõem a tentar responder a isto, porém é fato que o poeta foi se preparando (no conteúdo de sua obra, aliás) para este momento. Em seu soneto Vozes da morte, ele. se dirigindo ao seu tamarindeiro (sob o qual, aliás, escrevia boa parte de seus poemas), a descreve  com resignação e com certa visão fatalista da realidade. Diz: "Agora, sim! Vamos morrer, reunidos,/ Tamarindo de minha desventura,/ Tu, com o envelhecimento da nervura,/ Eu, com o envelhecimento dos tecidos!/ Ah! Esta noite é a noite dos Vencidos!/ E a podridão, meu velho! E essa futura/ Ultrafatalidade de ossatura,/ A que nos acharemos reduzidos!"

Uma singular ocorrência envolvendo o famoso parnasiano Olavo Bilac se desenrolou com a morte de Augusto dos Anjos, e esta só reforça o tamanho da recusa dos tradicionalistas em aceitar Augusto e sua obra em seu meio artístico. A descrição do episódio é de um dos biógrafos do poeta, Francisco de Assis Barbosa: “Dias depois de sua morte [de Augusto], ocorrida em Leopoldina, Órris Soares e Heitor Lima caminhavam pela Avenida Central e pararam na porta da Casa Lopes Fernandes para cumprimentar Olavo Bilac. O príncipe dos poetas notou a tristeza dos dois amigos, que acabaram de receber a notícia. – E quem é esse Augusto dos Anjos – perguntou. Diante do espanto de seus interlocutores, Bilac insistiu: Grande poeta? Não o conheço. Nunca ouvi falar nesse nome. Sabem alguma coisa dele? Heitor Lima recitou o soneto Versos a um coveiro. Bilac ouviu pacientemente, sem interrompê-lo. E, depois que o amigo terminou o último verso, sentenciou com um sorriso de superioridade: - Era esse o poeta? Ah!, então, fez bem em morrer. Não se perdeu grande coisa.” 

Uma coisa é certa: Augusto lançou apenas um livro na vida, Eu (mais tarde ampliado para Eu e outras poesias pelo amigo Órris Soares, partícipe da situação descrita), em 1912, isto é, dois anos antes de morrer, e com esta obra fez-lhe justiça a História. Hoje, Eu é o livro de poesia com mais reedições existentes no Brasil, ultrapassando soma de todas as obras de Olavo Bilac juntas.

Longe de guardar qualquer agrura em relação aos críticos ferrenhos de Augusto dos Anjos, os quais, afinal, lutaram por espaço na história para si e suas obras, o que se remata é que a literatura reserva sua memória aos poetas que, a despeito da forma e de rimas apropriadas, constroem sua poesia valendo-se de sentimentos genuínos como matéria-prima. Sentimentos estes arejados sob a forma de palavras que ecoam pelas almas de leitores, geração após geração. Augusto dos Anjos indubitavelmente é um desses casos. Em seu soneto Vencedor, ele narra, de forma arrebatadora, a "saga" de seu coração que, por sua sensibilidade artística, travava batalhas contra o mundo. Diz ele: "Meu coração triunfava nas arenas./ Veio depois de um domador de hienas/ E outro mais, e, por fim, veio um atleta,/ Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem.../ E não pude domá-lo, enfim, ninguém,/ Que ninguém doma um coração de poeta!"

Referências

"Augusto dos Anjos - poeta singular", por Pedro Luso de Carvalho
"Augusto dos Anjos", por Paulo Vieira
A Literatura Brasileira, por Alfredo Bosi

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